Meridianos & Paralelos
Um blog de notícias alinhavadas quase sempre à margem das notícias alinhadas
sábado, agosto 28, 2004
O SANGUE DOS OUTROS
Pela boca do secretário de Estado para os Assuntos do Governo, ficámos a saber que o «Borndiep» foi impedido de entrar em Portugal por razões de defesa da saúde pública. Ficámos a saber que o Governo está preocupado com os recursos clínicos a bordo desta unidade de saúde móvel e que teme que o barco possa «pôr em risco a vida das mulheres que a ele recorram». Poder-se-ia perguntar ao Governo que é feito dessa mesma preocupação, desse mesmo zelo e temor, diante dos insondáveis locais onde o aborto clandestino é praticado em Portugal, locais onde nunca ninguém vai porque legalmente se lhes nega a existência, locais sem endereço, sem rua, nem tabuleta na porta. Locais que nunca ninguém inspecciona porque ninguém sabe exactamente onde ficam nem como funcionam. Poder-se-ia perguntar ao Governo se não o preocupa que o silêncio e o obscuro da lei transformem esses locais num fumo que nem ele próprio consegue atravessar e onde nem com todo o poder que lhe assiste consegue fazer entrar equipas de inspecção médica e sanitária.
É que o «Borndiep» ao menos tem nome e rosto, aparece nos radares da nação e está devidamente sinalizado. Assume uma bandeira, uma convicção, um ideal. E é sabido o quão mais fácil é a um governo disparar contra alvos visíveis, o quão mais fácil se torna apontar baterias a um inimigo localizado no horizonte, do que fazer face às guerrilhas subterrâneas que se ocultam na penumbra, caminham pelas ruas do país, camufladas, consentidas, disfarçadas, misturando-se com a população em plena luz do dia.
Poder-se-ia recordar ao Governo que a clínica a bordo do «Borndiep» é operada por profissionais de saúde diplomados e que foi devidamente verificada e certificada pelas autoridades de saúde holandesas, seu país de origem. Mas pela boca do mesmo secretário de Estado, o Governo objectaria que esta não se encontra, todavia, certificada pelas autoridades de saúde portuguesas. E caberia então indagar porque é que até ao momento nenhuma delegação portuguesa subiu a bordo para proceder à sua inspecção e avaliar da respectiva acreditação ou não, sendo essa a grande preocupação onde reside o impasse.
Caberiam seguramente muitas outras coisas menos o grotesco fundamento avançado para explicar a interdição das águas portuguesas ao «Borndiep». É de muito mau gosto que no Despacho se evoquem razões de zelo para com a saúde pública. Leviandade por leviandade, o barco poderia ter sido impedido de atracar sem necessidade de recorrer a tamanha hipocrisia. Assim como assim, qualquer outro argumento teria servido menos este